quinta-feira, 19 de maio de 2011

E ali na próxima quadra...

O par de botas toca a neve e o frio penetra entre os dedos dos pés, já que o material dos tais calçados não é da melhor qualidade, mas isso não vem ao caso. O que interessa é o caminho que as duas botas vagabundas percorrem e o seu destino. Ainda é dezembro na kleine Tübingen e o inverno ainda não se foi, muito pelo contrário, a recém tomou espaço. Os pés se inclinam levemente para efetuar o movimento necessário que a pequena subida exige. Ao alto do bairro típico de estudantes e famílias alemãs se encontra um território não tão comum assim. Ao alcançar a parte alta do Französischer Viertel é preciso ainda atravessar as esquisitas construções: paredes de madeira ornamentadas com simples janelas quadradas formam o que se pode chamar de casa. A peculiaridade está em seus formatos que se assemelham com o de um trailer, aqueles que se vê nos filmes americanos em que uma família inteira viaja dentro de algo que mistura cozinha, banheiro e sala no mesmo ambiente. Exatamente isso que se encontra ao atravessar o caminho de neve e ascender a pequena montanha. A caminhada continua, ouve-se o mugido de uma vaca, aliás de duas. Um pouco mais a frente uma surpresa inesperada: um pavão. Um animal somente visto em zoológicos pode ser encontrado aqui, bem perto de você, quando se está em Tübingen. O animal de cauda imponente vive solto, como se fosse uma simples galinha a mais no galinheiro, mas essa é outra história. Hoje ele é só mais um obstáculo no caminho. Já ultrapassado, chegamos à porta de uma verdadeira casinha. A maçaneta é girada pelas mãos geladas das visitantes que ao atravessar a entrada se deparam com os olhares atentos e curiosos dos moradores.

As primeiras palavras trocadas entre as estranhas e os habitantes são em inglês, já que nenhuma das duas carrega os traços alemães. A conversa, entretanto, prossegue em um alemão desenrolado com alguns erros da parte das estrangeiras e, é claro, com a indispensável companhia de uma garrafa de cerveja para cada uma. A cena em questão se passou no bar de um lugar misterioso chamado Wagenburg. Misterioso até esse dia, em que duas estudantes curiosas (eu e minha amiga Carol Palhares) desbravaram a neve fria para descobrir o que lá havia. Wagen em alemão significa carro, veículo, e Burg seria o que se pode chamar de burgo. Nesse caso, a junção das duas palavras dá nome a um território, no qual pessoas vivem em comunidade, cada um com o seu trailer ou forma parecida de construção. Uma forma de vida alternativa é o que buscam os que ali decidem viver. Um contato próximo com a natureza, maior liberdade de se locomover, independência são algumas das razões citadas pelos moradores para explicar o por quê da escolha. Os primeiros moradores vieram em 1991 e ali permaneceram com a autorização da Prefeitura. Nada ali foi construído ilegalmente, para ali se estabelecer é necessário firmar um contrato e pagar uma parte de seu rendimento a cidade. Claro que como em todos os casos há exceções. Nem todos Wagenburg existentes na Alemanha são legalizados. Em cidades grandes, como Berlim e Stuttgart, o surgimento ilegal deste tipo de moradia se torna mais fácil.

Assim como a cidade precisa aprovar a formação de um lugar assim, quem quer morar em um Wagenburg precisa ser aceito pela comunidade. Mais ou menos como uma candidatura a uma vaga de emprego, os possíveis futuros moradores precisam atender a alguns requisitos básicos: primeiro é necessário haver um lugar para ser ocupado pelo vagão do candidato, outra condição é não possuir muitos animais e nem ter muitos filhos (confesso que não entendi exatamente o por quê, mas tudo bem), e por último toda a comunidade deve estar de acordo. Estas regras variam de Burg para Burg, mas o importante é estar de acordo com a maneira de vida e ser aceito pelos outros moradores. Imagino que para isso é necessário fazer algum tipo de “propaganda de si mesmo”, ser sympatisch und freundlich (simpático e amigável) devem ser características que constem no currículo. Depois de mais ou menos um ano de seleção é possível finalmente se mudar para o Wagenburg.

Um estilo de vida mais ecológico é o diferencial do pequeno bairro. Isso nos conta uma antiga moradora do local e também garçonete no bar da comunidade, o qual está aberto somente nas terças-feiras à noite. Com um singelo sorriso de quem não se importa em abrir sua vida aos visitantes, a senhora de 40 e poucos anos - apesar de sua pele carregar marcas de mais anos de vida - explica como funciona a vida no Wagenburg. A energia ali utilizada vem do sol, por isso os tetos solares em cima das casas, o aquecimento no inverno é feito da forma antiga, através de troncos de árvores e fogo. O mais curioso, contudo, é o uso da água e a execução das necessidades fisiológicas. A forma adotada foi a forma antiga, ou seja, fazer no meio do mato foi a forma adotada. O frio não parece incomodar, pelo visto já estão acostumados. A água potável é outro problema. Durante o ano ela pode ser retirada de um grande container, entretanto durante o inverno, os moradores são obrigados a buscá-la com amigos ou conhecidos que vivem em casas ou apartamentos comuns pelo bairro ou na cidade. Outra opção é comprar água no supermercado e carregar até em cima. Com certeza, viver dessa forma não é para qualquer idade. A moradora de óculos de aros grossos e escuros, olhos grandes e um sorriso acolhedor, apesar dos dentes já danificados, conta que ao chegar a uma idade mais avançada, a vida ali se torna complicada. Por isso, muitos moradores se mudam depois de algum tempo para uma casa ou apartamento “normal”. Esta parece ser melhor opção para alguns ao passar dos anos. Muitos moradores antigos, que mudaram seu estilo de vida, ainda voltam às terças-feiras para ver os velhos amigos e sentir de novo a atmosfera do já conhecido ambiente. Essa atmosfera que desperta curiosidade de quem não a conhece e creio que não deixa a ninguém desconfortável. Ao atravessar os portões que dividem a pequena vila do bairro de típicos estudantes e famílias, se encontra outros tipos de famílias, não tão típicos, mas satisfeitos com seu estilo de vida e dispostas a compartilhá-lo com os visitantes... Para os curiosos que moram em Tübingen, vale a pena a visita...

OBS.: As informações do post foram conseguidas durante trabalho de reportagem para um curso de alemão durante o semestre de Inverno. As visitas foram vezes algumas vezes para escrever o texto e outras somente por lazer. O resultado foi uma reportagem simples, mas com muito conteúdo elogiada pela professora. (só para me exibir um pouco). Agradeço aos amigos Carolina Palhares e Allan Kuwer que estiveram presentes na apuração. Danke schön, pessoal!